Youtube Kids -  a minha experiência

Este post vai ser um pouco diferente do normal. Isto porque venho-vos falar da minha experiência como mãe. Tento evitar vir para aqui desabafar sobre a "motherhood" e toda a odisseia que é ser mãe, porque a meu ver a internet está cheia de bons e maus conselhos sobre o assunto. E sei que existem por aí muitos trolls pela internet que pegam nas nossas palavras e açoitam-nos com dogmas e paradigmas do que acham que estamos a fazer bem e errado.

Ora bem, este post não é para ser entendido como um post de conselhos mas sim apenas um relato de uma experiência que fiz como mãe. Foi-me chamada à atenção quando estava a falar sobre isto com uns amigos, que esta experiência e as minhas conclusões sobre a mesma, poderiam dar um post interessante aqui no site e que poderiam ser do interesse de outras pessoas. Por isso aqui vai!

Ora, eu há coisa de três semanas atrás resolvi instalar no meu tablet o Youtube Kids. E durante duas semanas deixei esta aplicação no meu tablet para ver o que a minha criança de três anos fazia disto. (ATENÇÃO: não se ponham já a enrugar o nariz de forma depreciativa, em julgamento, pois todos nós sabemos que o tempo de ecrã é uma realidade a que muitos pais recorrem atualmente).

No início deixei a criança explorar esta aplicação, sempre na minha presença, como rotina: na hora da pausa depois do almoço e depois do jantar. E após duas semanas de uso verifiquei 5 cinco consequências do seu uso na minha família e na nossa criança:

1. Alterações no humor

A minha criança é bastante mexida, ou seja, nunca pára quieta e está sempre em busca de uma nova brincadeira ou algo novo para fazer. Aquando a nossa experiência verifiquei que, por vezes fora das horas pré-determinadas de ecrã, ela pedia-me repetidamente para usar o tablet para ver o "Kids" (como ela lhe chama). Consegui perceber também que ficava mais irritável e sempre que estava "aborrecida" era só isto que ela queria fazer. Para o fim da segunda semana reparei que a "obsessão" era cada vez maior. Ou seja, tal como acontece a nós adultos ficarmos parados e viciados no "scroll", ela também ficou.

O tempo de atenção sobre os vídeos que escolhia era menos de um minuto para cada um, às vezes via 30 segundos de um vídeo e carregava logo noutro que lhe era sugerido no canto, fazendo isto sucessivamente durante todo o tempo que via o Kids. Por conseguinte, nem apreciava o vídeo que estava a ver, porque o que lhe dava prazer era ter o controlo e estar sempre a clicar no próximo.

Eu tenho oito aplicações no meu tablet de jogos incluindo o Disney Plus e o Prime Video, e no decorrer do tempo desta experiência ela raramente quis interagir com essas aplicações ficando fixada apenas no "Kids".

2. Alterações no sono

Resultante do vício que se instalou sobre a aplicação comecei a reparar que o sono era mais atribulado e agitado. Não queria nem deixava-se dormir antes das 23h. E era sempre uma luta para adormecer. Tentava sempe convencer-nos a ver mais Kids e mais Kids e a pedir mais tempo para o fazer. Estava mais ansiosa e agitada à noite. E mesmo estando absolutamente KO e a morrer de sono, dizia que não estava cansada nem queria dormir.

3. Alterações na postura e respiração

Ao contrário as outras apps que tenho, ao usar a app do Youtube Kids dei-me conta que ela punha-se sempre muito mais em cima do tablet, não preservando a distância certa em relação ao ecrã, como se quisesse entrar lá para dentro. O que conduzia a posturas super erradas, mais torcida que um Yogi experiente.

Mas foi a respiração que mais me surpreendeu! Pois nunca a tinha visto a fazer aquele tipo de respiração antes. Basicamente imaginem uma respiração à Darth Vader, pois era assim que a minha criança respirava enquanto via o "Kids". Em mais nenhuma situação da nossa vida a ouvi respirar assim. Parece-me que isso se devia a duas situações:

  1. A postura que ela escolhia ter, que era sempre com o queixo colado ao pescoço ou super dobrada;

  2. Porque ela não era um elemento ativo em nada, estava ali modo gordos do Wall-E a ver o "Kids".

4. Alterações no tempo em família

A utilização do Youtube Kids também alterou o nosso no tempo em família, tanto na quantidade de tempo, como e mais significativamente na QUALIDADE do tempo em família.

Como pais vimos-nos a utilizar o Kids como uma ferramenta de distração para conseguirmos que a nossa criança ficasse quieta por um "bocadinho de tempo", enquanto fazíamos tarefas por casa. E apesar de isso aparentemente não ter nada de mal, acontece que se não tivermos noção do tempo que estamos por ali a fazer coisas, quando damos conta já passou uma hora e a criança está ali entretida agarrada ao tablet, em vez de estar ativamente ou aborrecidamente a trabalhar a sua imaginação fora do ecrã.

Assim sendo, a meu ver mesmo que tenhamos beneficiado de ter mais tempo para fazer qualquer coisa e a criança estar entretida, isso não se traduzia verdadeiramente num ganho, porque a criança esteve sozinha a "sorver" conteúdos que não controlamos, em modo Darth Vader e Wall-E sem piscar os olhos, só para que consigamos ter 30 minutos para fazer o jantar ou tomar um banho sossegados. Não compensa!

Para tentar melhorar esta experiência usámos o temporizador incorporado do Youtube Kids no qual o adulto pode estabelecer uma password ou responder a uma multiplicação para conseguir definir o tempo que a aplicação está ligada. Usei isso e fui definindo tempos de 30 minutos, 15 minutos e às vezes de 45 minutos. Aquilo acaba o tempo e independentemente do que a criança está ver, fecha e aparece uma imagem default a dizer que o tempo acabou. Muito interessante ter esta opção para ajudar a manter um melhor controle parental sobre o tempo de utilização da aplicação, servindo como guia para o próprio adulto ter maior consciência do tempo que já passou. No entanto, isto trazia um problema. Sempre que o alarme disparava e o tempo de ecrã terminava na aplicação, vinham as birras de o querer mais e de mais 2 minutos por favor!!!!!...

Á noite tínhamos a rotina de ler um livro ou jogar um pouco juntos nas outras aplicações que tenho no tablet. Depois de ter o Kids o interesse pelos livros ficou a zeros e a procura do adulto para interargirmos juntos sobre um jogo ficou reduzido também a zeros. Ou seja, a criança passou só a querer ver o Kids sozinha o máximo de tempo que conseguisse. Reduzindo assim a sua vontade ou necessidade de passarmos tempo em família, seja com o pai ou com a mãe.

5. Vídeos de brinquedos e vídeos predatórios

Neste mundo do Kids existem muitos vídeos de unboxing de brinquedos e quando vos digo que é ridículo é mesmo ridículo. Estou-vos a falar de vídeos de unboxing de toda a parafernália que existe da Barbie, Patrulha Pata, Peppa Pig, etc... Calculam o que isto fez...Pois bem, todos os dias, existia uma nova fixação sobre um novo boneco ou coisa que a criança dizia gostar muito e queria que nós comprássemos. Todos os dias existe mais um:  -Mas eu quero muito, mãe por favor, muito por favor! E a mãe lá lhe dizia: - Vou ver e ponho na lista. (Que basicamente se traduz, na lista da reciclagem de ideias e coisas que nunca vão acontecer). Mas a lista tornou-se cada vez mais infinita...tudo fruto da vizualização repetida destes vídeos nesta app.

Agora vou vos falar de outro tópico que alguns de vós podem ou não saber mas acontece que no Youtube Kids existem muitos vídeos que são feitos por pedófilos. E acreditem que como Youtuber a diferença de eu postar um vídeo que é remetido para o Kids e um para o Youtube "normal" é clicar numa e noutra opção a dizer que o conteúdo que estou a produzir é adequado para crianças, ou seja, se não for bem intencionado não há grande controlo a não ser a minha própria palavra em como é ou não adequado.

Desde 2017 que o Youtube registou esta preocupação:

Na semana passada, removemos anúncios de quase 2 milhões de vídeos e mais de 50.000 canais disfarçados de conteúdo familiar”, disse o YouTube . “Conteúdo que coloca crianças em perigo é repugnante e inaceitável para nós.” A controvérsia do YouTube sobre vídeos violentos e predatórios disfarçados de vídeos para crianças começou há cerca de um mês, quando repórteres e usuários do YouTube começaram a perceber as semelhanças entre o entretenimento infantil no YouTube e os vídeos seriamente perturbadores que passavam furtivamente ao lado dos normais. As marcas estavam a colocar anúncios em vídeos que sexualizavam crianças, acompanhados de comentários predatórios.
— fonte: https://mashable.com/article/youtube-deletes-kids-videos-predatory visto em 29/04/2023

Portanto este problema não é de agora. E creio que nunca vai deixar de ser um problema. Existem canais no Youtube Kids nos quais toda a família está investida a fazer conteúdo, onde fazem autênticos episódios em grandes mansões de brincadeiras como se fossem episódios interactivos da TV. Depois estes canais são copiados para várias línguas. E sabem quantos subscritores têm estes canais?!não menos que 1,5 milhões. Para não falar do problema da língua em que muitos destes vídeos do Youtube Kids usam. Grande parte do conteúdo está falado em brasileiro ou inglês. Raros são os vídeos que encontrei em português-europeu e muito destes são emissões do canal do Panda ou de outros canais que podemos ver directamente na televisão. A visualização do conteúdo na língua brasileira em crianças de idades mais pequenas conduz a que a fala e os sons que reproduzem são versões brasileiras do nosso português. O que na minha opinião não ajuda quando estamos a tentar ensinar aos nossos filhos a falar português.

Agora a pergunta que devem estar mortinhos para fazer, Sofia encontraste algum vídeo mesmo estranho e predatório?!! Encontrei um. Estava muito bem sentada ao lado da minha criança quando ela clica num thumbnail aparentemente inofensivo de uma música em inglês, com a melodia da música  - "The wheels of the bus" ou em português - "As rodas do autocarro". Passado cerca de dez segundos do vídeo noto que a letra da música é totalmente diferente e começo a olhar bem para as imagens do vídeo em si. Basicamente a letra da música tinha como mensagem essencial o seguinte: que no autocarro existiam papás muito amigos que ofereciam chupa-chupas e gelados, e as rodas do autocarro giravam e giravam, e os papás do autocarro eram sempre tão amigos, tão amigos... Escusado será dizer que retirei logo o vídeo e o denunciei. Mas era claramente um conteúdo predatório. Encontrei UM em duas semanas, mas isso é mais que suficiente para me convencer que isto não era para nós.

Conclusão

Ao fim de duas semanas desta experiência eliminei o Youtube Kids do tablet e ficaram só as restantes seis aplicações que já tinha e que hei-de falar delas num post próximo. Não me arrependo de ter feito esta experiência. Creio que se existia alguma dúvida sobre o impacto que o mundo das redes sociais tem sobre a vida das nossas crianças, essa dúvida ficou morta e enterrada, sobrevivendo só a certeza das consequências reais resultantes da interação das nossas crianças com este tipo de aplicações sem existir uma supervisão adequada. Desta interação, fruto da minha experiência, resultarão inevitavelmente alterações na saúde mental, física e no ambiente familiar das crianças e do seu agregado familiar. O tempo de qualidade com o outro sofre e afastamo-nos uns dos outros.

Hoje quando a minha criança tem tempo de ecrã, ela tem acesso apenas a dois jogos da Lego, ao Khan Academy Kids, a um jogo de fazer princesas, ao Prime Video para os desenhos animados e ao Disney Plus. No dia seguinte a acabarem as duas semanas de Youtube Kids, ela perguntou-me onde estava o Kids e eu respondi-lhe que já não havia. Ela insistiu e eu disse-lhe que tinha que escolher outra coisa. Ela acabou por escolher um filme na Disney Nature sobre borboletas e abelhas que viu até ao fim e no final fomos ver um livro - uma enciclopédia visual na qual procurámos coisas sobre abelhas e borboletas, rodeámos e identificámos letras com o lápis e falámos sobre as cores e as dimensões de cada uma. No fim, ela pediu para desligar o tablet e tirar o livro, pediu-me um abraço e para desligar a luz, e assim adormeceu pouco tempo depois. E eu fiquei ali a pensar, na diferença da noite para o dia que se deu, apenas desligando uma fonte de inquietação. E confirmadas as minhas suspeitas fiz paz com esta situação.

Engraçado que ao pensar nesta experiência e ao escrever este post vi como o comportamento da minha criança é espelho do meu e de outros adultos que conheço... Quantos de nós estamos agarrados a posts, reels, shorts, vídeos, em scroll permanente no Facebook, Instagram e Youtube. Quantos de nós nem se apercebe da mudança na nossa atitude, na forma como respiramos, na nossa ansiedade, no nosso consumismo, nos impactos no nosso sono, na forma como lidamos e ignoramos os que nos são próximos porque estamos agarrados ao telemóvel, ao tablet ou ao computador?! Este post não quer servir para dar conselhos de mãe. Este post é um relato de uma experiência minha que pode ser a vossa experiência, sejam pais ou sejam simples adultos, que vivem numa era digital na qual às vezes ficamos presos e intoxicados.

Não quero dizer com este post que vou virar eremita e vou apagar todas as aplicações e redes sociais que tenho. Não acredito em visões do 8 ao 80. Acredito sim, em equilíbrio e em espírito crítico. Se pudermos parar, observar e melhorar o que nos rodeia admitindo os nossos erros e percebendo onde está a fonte da nossa inquietação, somos melhores uns para os outros e melhoramos a nossa qualidade de vida, e consequentemente gastamos tempo em coisas que verdadeiramente são importantes para nós.

Até ao próximo post!

Tempo de elaboração e edição: 3 horas

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