Luísa

Ela era uma menina pastora, cheia de medos e sonhos...por vales e montes levava as suas ovelhas.

Menina pastora de seis anos andava desde o amanhecer até à tarde. Sua companhia cães, badalos e árvores.

Acreditava no poder da terra, acreditava em Deus e magia. A sua intuição era grande e muita era a sua coragem.

Chamava nomes a fantasmas, tinha garra e compaixão. Aprendeu as letras com o rapaz de olhos verdes. E por ele se enamorou mas alguém na aldeia sempre agoirou...não era para ser ... aquele rapaz não era para ti... há de cair de bicicleta até se partir.

Os seus caminhos levaram-na á cidade e lá foi governanta e mulher dos salgados. Com mãos fortes amassava desde as 4 da madrugada...De manhã pela fresquinha seu marido lá levava os salgados para o seu destino.

Ensinou-me a olhar para as estrelas, ensinou-me o poder da terra e da intuição, deu-me cama, colo e punha o marido a dormir no chão para que juntas na cama aninhadas falássemos de coisas do coração.

Ensinou-me o Pai Nosso e a Avé Maria. Ensinou-me a acreditar em dons e magia. Ensinou-me a amar os animais e a desconfiar dos Homens. Ensinou-me a valorizar o sabor de um massa tenra com chá pela manhã.

Era mulher pequena e robusta. Amava a natureza mas não gostava de andar na rua.

Ensinou-me a falar com flores e com as plantas. Trocou-me as fraldas e viu-me crescer.

Anos mais tarde acolheu-me e deu-me abrigo,  numa fase conturbada deu-me carinho. Acolheu também de braços abertos aquele a que hoje chamo marido.

Lutou por mim e por nós, mesmo quando não fazia sentido.

Aos poucos a força e a saúde foram descaindo. Anos difíceis se passaram onde entre tremores, perdas e quedas memórias se estilhaçaram.

Á vida agarrou-se desesperada:  "- Não quero morrer.", me dizia. "Quero a vida, quero a vida...", e assim se passaram anos de cuidados uns dias bons e outros desnaturados.

Lembro-me hoje de palavras sábias: - A dívida entre gerações deve ser paga. A dívida por quem cuidou de nós.

Eu e os meus assim a pagaram, apesar dos medos, dos receios, da incerteza, das dores e de um sistema que abandona, que em nada cuida nem deixa cuidar.

As fraldas foram mudadas, os banhos foram dados, as feridas foram saradas, a tensão, o oxigénio e a temperatura todos os dias medidos, os comprimidos foram dados, as papas, as águas, o espessante, o laxante, e os rebuçados que tanto gostavas.

Beijos na testa e apertos nas mãos, enquanto agarravas o teu ursinho, palavras do coração trocadas...Lembrei-te todos os dias quem eras e todos os dias quem tomava conta de ti, queríamos que fosse ao nosso colo que partisses mas pelos vistos a natureza não quis assim. Nunca quisemos que sofresses pois sabíamos que tinhas medo de partir, mas no fim sabemos que apesar da vontade, o corpo não quis assim.

Conheceste a minha filha e ela também mesmo pequenina tomou conta de ti, de geração em geração o cuidar enraizou-se como tradição. E isso enche-me o coração.

Ela era uma menina pastora, cheia de medos e sonhos...por vales e montes levava as suas ovelhas, chamava-se Luísa, foi filha, irmã, tia, mãe, avó e bisavó.

Obrigada pelos teus ensinamentos, obrigada por teres dado vida a quem ma deu.. que em luz estejas rodeada sem medos e em paz.

Até já, até logo ou até sempre avó!

[1939 - 2022]

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